quarta-feira, 22 de julho de 2009

Lux In Tenebris (por Flávio Viegas Amoreira)

Fazem nas trevas do dia
Ao correr da noite escura
O que tem na natura.
Sempre voltam ao início.

Nela o vício é a virtude
E a virtude é o seu vício.
Cada um , em seu ofício,
Metamorfose produz:
Das trevas acendem luz.

[poema de monge irlandês do século IX , tradução professor Paulo Ferreira da Cunha, Universidade do Porto]



Na aurora do cinematógrafo o espanto: a caverna de Platão ao avesso: a retenção possível do Devir, a apreensão imanente do atemporal estava ali na salinha escura avessa ao ´néon-fake´ das metrópoles que regurgitavam ilusão ,

´Maya´ entre o burburinho das ruas. Muita luz, muita sombra: Lumiére alumiando o cotidiano além do mimetismo: cinema como fenomenologia do espanto encantatório do instante. Em ´´Hanna e suas irmãs´´, o personagem de Woody Allen tenta todas as crenças religiosas e alternativas terapêuticas para a dor de existir: a beira do suicídio, entra na ´´treva´´ aparente duma matinê novaiorquina e revela-se a luz : uma fita dos ´´Irmãos Marx´´ servem como ´´rosebud´´ ou ´´madeleine proustina´´ para sua redenção. Epifania: há uma claríssima dicotomia entre o simbolismo carregado de significados extraídos das telas e o esvaziamento de sacralidade no prosaico universo consumista e estupidamente hedonista do ´´ mundo-lá-fora´´. Sinto-me como numa catedral laica, numa clareira aconchegada quando me rendo ao eterno presentificado ao assistir ´´O sétimo selo´´ ou ´´Morte em Veneza: a luz se faz com Bergman e Visconti pontificando feito sumo sacerdotes da Fé dos sem crença transcendente: Arte! E quanto de Arte reunida projetando imagens e diálogos como quem lê a ´´Divina Comédia´´ ou ´´Moby Dick´´ desconstruídos magistralmente em Murnau ou Dreyer : se o século XX deixou legado, creio que foi o cinema sua maior contribuição tendo Chaplin como um Shakespeare

para platéias múltiplas na sua variedade de formas e conteúdos liricamente estilizados. Heresia comparar o bardo inglês ao ´´genial vagabundo´´? Tão pertinente quanto revisitar ´´Amacord´´ com olhos de quem percorre Bocaccio... A arte cinematográfica é a que mais se aproxima do mito prometéico de tomar a tocha de Zeus: planos sequencias, ´zoom ´, montagem:

é na elaboração da perspectiva filmada que mais rebubinamos a cosmogonia e a gênese : no começo Mélies fez do Verbo : luz em sinestesia, câmera e ação!

´´Long shot´´ ou ´´Big Close´´ : o cinema esquadrinha a natureza humana com enquadramento que a fugacidade opaca da modernidade já não dessacralizou.

Cinema como liturgia, êxtase sensório, orgíaca plasticidade para minhas retina nada fatigadas. Recorro ‘a Heidegger para transplantar ontologia a minha intimidade com a Sétima Arte: ´´Clarear algo que dizer: tornar algo leve, tornar algo livre e aberto, por exemplo, tornar a floresta, em determinado lugar, livre de árvores. A dimensão livre que assim surge é a clareira. O claro, no sentido de livre e aberto, não possui nada de comum, nem sob o ponto de vista lingüístico, nem no atinente ‘a coisa que é expressa, com o adjetivo ´´luminoso´´ que significa ´claro´. Nunca, porém, a luz primeiro cria a clareira; aquela , a luz, pressoupõe esta, a clareira. A clareira é o aberto para tudo que se presenta e ausenta. ´´ O cinema não como lume, sim ´numinoso´:

algo que redefino apartir do natural ´ reproduzido´ e que desdobro em miradas retidas no esforço em que me perco, a errância que ´paraliso´ num ´spot´ ou ´flash´ recobrado. A técnica ‘a serviço da civilização que não ´desnatura´ ou ´desumaniza´: facho que tira do pó e lança pontes ‘a literatura e ao teatro:

além da perspectiva renascentista serializada. O cinema indústria, entretenimento ou refulgência definido sem ilusões grandiloqüentes por Paulo Emílio Salles Gomes: ´´A história da arte cinematográfica poderia limitar-se, sem correr o risco de deformação fatal, ao tratamento de dois temas, a saber, o que o cinema deve ao teatro e o que deve ‘a literatura. O filme só escapa a esses grilhões quando desistimos de encará-lo como obra-de-arte e ele começa a nos interessar como fenômeno. Não é na estética, mas na sociologia que refulge a originalidade do cinema como arte viva do século.´´ Quanta lucidez do mestre Paulo Emílio! Contradiz-se por saber inconclusa qualquer ordenamento estanque do que seja Cinema: mas enfatiza seu maior predicado enquanto Arte que soma, desnuda-se e deita raízes cromático-prismáticas:

o Cinema em seu âmago ´refulge´! A angústia da folha em branco ao escritor é

a luta do cineasta da sombra ao copião: o diáfano, o informe dissoluto pede ser clarificado pelo amalgama entre intelecção e sensibilidade captada por negativos imagéticos do nada que ressurge do vazio preenchido e resignificado: holofotes são alegorias solares. ´´O artista (...) excede os estados perceptivos e as passagens afetivas do vivido. É um vidente, alguém que se torna. Como contaria ele o que aconteceu, ou o que imagina, já que é uma sombra? Ele viu na Vida algo muito grande, demasiado intolerável também (...) fazendo estourar as percepções vividas numa espécie de cubismo, de simultanismo, de luz crua ou de crepúsculo, de púrpura ou de azul, que não tem mais outro objeto nem sujeito senão eles mesmos.´´ Diz Deleuze sobre

arte como retenção ou evasão apartir da obra em si: o contraste entre o ensolarado em meus olhos marejados e o choque com o horizonte diante de meu destino fora da sala de projeção. Nenhum impacto é maior que ser espectador numa cidade de praia, mar, cais: duas atmosferas telúricas magistrais: a solitude partilhada numa sessão quase vazia e o fim de tarde indagando: onde é mais Vida a Vida? Diante da tela ou do marulho do Oceano? O claro-escuro, o ´sfumatto´ resgatam-me o insondável: ´´Frankstein´´ de James Whale, o ´´film-noir´ básico: ´´Laura´´ , o ´gran-finale´ de ´´Sunset Boulevard´´ com Gloria Swanson entre luz e trevas na grande metalinguagem de Hollywood, - a dança enlouquecida de Peter O´Otole em ´´Lawrence da Arábia´´, a interpretação bizarra de Bette Davis em ´´Baby Jane´´ ou o recente clássico de François Ozon : ´´O tempo que resta´´ são fitas que me tornam obsessivo: Cinema é fundamentalmente obsessão do olhar pelo excesso de sensibididade posto nele: o olhar, a imagem. ´´Despertar´´, reconhecimento da verdadeira identidade da alma:

´anamnesis´: retorno a paraíso perdido, o Cinema é como o Oceano para mim:

útero apaziguador ou erotismo da visualidade que me penetra epidermicamente. Na literatura me busco, através do cinema, por ele:

me perco achando, tão ou mais profundo. Meu cérebro além de máquina de escrita, faz-se luz como neurônios tragados cinética e cinematograficamente.




Flávio Viegas Amoreira é escritor, crítico literário e jornalista

Ilustração 1: tela "Peixe Azul" de Maurício Adinolfi
ilustração 2: fotograma de Gloria Swanson no filme de Billy Wilder, "Sunset Boulevard"


publicado originalmente no blog CURTA SANTOS

Um comentário:

Anônimo disse...

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