segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Botequim Também É Cultura! (por Armando Catunda)


- Boa noite, senhores.
Como sempre a entrada do Foca no boteco tinha algo de formal.
Cumprimentava os presentes com uma leve mesura e gravemente depositava seus cadernos universitários sobre o balcão. Então pedia:
- Senhor proprietário, gostaria de degustar uma ampola à temperatura correta.
Depois do primeiro gole passava a alisar carinhosamente os enormes bigodes. Bigodes estes que lhe valeram o apelido que tanto o irritava.
- Pô, bigode, tu parece aquela foca do desenho do Pica Pau. Dito e feito. Pegou.
Mulato alto e elegante para os padrões locais, com suas frases elaboradas de quem lê muito, como ele gostava de frisar, o Foca depois que passara a freqüentar o supletivo noturno “piorara muito em sua mania de ser besta”, segundo o Bibelô.
Bibelô de Balcão ou simplesmente Bibelô para os íntimos, trajava-se informalmente: boné Lee, com as abas quase cobrindo os olhos, chinelo de dedo e a bermuda sempre com o jornal popular enfiado no bolso de trás. Bebia e fumava em velocidade cruzeiro. Pouco falava ao contrário do Foca que mal chegara e já pontificava:
- Os portugueses sim, falam corretamente. Eles dizem: Tu vais á praia? Tu vais ao cinema? Já o santista só fala erradamente: tu vai, tu foi. É tão bonita a nossa língua mãe conjugada corretamente, não é, senhores?
A pequena e atenta platéia composta dos últimos pinguços da noite, concordou, impressionada com tamanha erudição.
- Já o santista tem essa mania de avacalhar com a língua: - Tu viu o Betão por aí? Tu vai na Vila domingo? Não dá, é muita vontade de falar errado!
O Bibelô aparentemente alheio, acompanhava o balé de duas moscas no balcão, mas ao ouvir a honra da cidade ser atacada tão frontalmente, reagiu de pronto:
- Peraí, o santista fala errado, o cacete!
- Fala! Ele não utiliza a segunda pessoa corretamente.
- Que segunda pessoa?
- Tu. A segunda pessoa.
- Ah! Quer dizer que se eu disser: tu vai no jogo, tá errado?
- Claro que está.
- Errado o que, rapaz.Tu é a palavra mais certa que existe.
O Foca ouvia com um sorriso irônico, balançando a cabeça levemente.
- Deixa de ser ignorante. O português correto é: Tu vais ao jogo. Vais, entendeu? Só os portugueses falam certo a segunda pessoa.
- Que segunda pessoa? Que segunda pessoa? Tu não é a segunda pessoa coisa nenhuma. O tu é o tu. É muito mais certo do que falar você. “Você” é uma palavra emprestada.
- O que? Esse é duro de entender! Cacetada...Olha aqui ô baixinho, tu não sabe nem o que é pronome.
- Olha lá, ele falou “tu” errado! Tu não sabe. Não, o certo é (fazendo beicinho): Tu não sabes...
- É que você é tão burro que me deixa nervoso. Você é uma palavra emprestada... Nunca ouvi uma asneira igual. Ouviu essa português?
Bibelô tirou o pé da banqueta, bebeu a pinga de um gole só e peitou:
- É emprestada. O certo é o “tu”. “Tu” é a palavra mais certa do dicionário porque é a mais antiga. Como é que falavam antigamente, tu ou você?
Antigamente quando? Perguntou o Foca ressabiado.
- No princípio do mundo.
O Foca ficou mudo. Não esperava por esta.
O Bibelô apertando:
- Como é que falavam os romanos, hem? Como é que eles falavam? Tu vais ao Coliseu. Tu és César. Ou era “você”?
O Foca vendo-se abandonado pela platéia que balançava a cabeça aprovando a argumentação do Bibelô, contra atacou:
- Está vendo: Vais. Tu vais ao Coliseu. Este é o certo!
- O vais é uma subseqüência. O errado é ele e não o tu.
O Foca abriu a boca sem falar. Sentiu o golpe. Perdia terreno nitidamente. Bibelô seguia implacável:
- É lógico. O tu vem antes. Agora se tu vai se tu fica o problema é teu.
Raimundo, o copa baixinho, passou um pano no balcão e apontou o Bibelô com o queixo:
- Esse aí, é foda!
O Foca mudo.
-Tu tá estudando, mas não tá estudando muito, hem Bigode? Querendo engambela os outros... Pra cima de mim? Malandro é o gato...
Bibelô vendo no sorriso de todos sua clara vitória, lavando a honra da cidade, tripudiou, irônico:
- Tá bem, o santista fala errado. A Bíblia deve estar errada também.
E enérgico nocauteou o pobre Foca:
-Tu é uma palavra que vem de Deus.
Exemplificou estendendo os braços:
- Tu é meu filho. Tu fará minha obra. Dá mais uma pinga aí. Quer tomar uma, sabidão?
O Foca nem respondeu, desalentado ainda tentou seu último aliado:
- Não dá, né português? O cara não conhece nem pronome...
Mas o português virou-lhe as costas e ligou o rádio.

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