terça-feira, 30 de junho de 2009

Poemas que Fugiram da Gaveta (por Armando Catunda)



BALADA BEAT (Junho 2003)

Agora eu ando pelas ruas de um Gonzaga imaginário.
Volto a não ter nada como nas antigas madrugadas
Apaixonadas, em que caminhava protegido
Por um velho guarda chuva e por coturnos
Um número maior do que meus pés.
Pela alameda que ladeava o canal
Deserto e molhado, em pleno mal secreto.
Procurava alguma coisa dentro de mim, não fora
E caminhar era só um eco da batida do meu jovem coração.
Ia até a praia escura sem lua e sem a luz nojenta
Que o medo e a cretinice fizeram os prefeitinhos instalar.
Medo dos assaltos e das fodas que quebravam a rotina à beira-mar.
Andava até onde as ondas começavam a invadir a amurada,
Minha passarela úmida, e lá parava olhando o longo mar.
Ouvindo seu barulho que apagava o som dos carros
Que cruzavam a avenida àquela hora.
Às vezes ouvia um Bob Dylan, antes de partir
Nas baladas solitárias, Lay Lady Lay, levava
No espírito esse estado de poesia.
Depois dava às costas para o mar com suas ondas que saíam do nada
E vinham brilhantes, roubando qualquer luz que pudessem no caminho,
Para se acabar na areia escura. De cócoras, sob a sombra do enorme
Guarda-chuva de meu pai, mesclava-me na noite molhada,
Escondia-me como um caramujo em sua casca,
Protegido de qualquer olhar,
No esconderijo de sombra que inventei.
Abrigado, espiando a luz dos prédios altos, rodopiava
Sempre de cócoras, sobre a base sólida dos coturnos militares,
Meu pedestal no qual, eu, estátua camuflada,
Espionava o mundo adulto, o mar escuro.
Sempre este antigo prazer que me acompanhou a vida toda
O de poder, estrategicamente, ver sem ser visto: sentinela de mim mesmo.
Depois voltava, lentamente pelo caminho das alamedas iluminadas
Vendo as antigas, enormes e lindas árvores
Refletidas nas águas lodosas do canal.
Andava então por ruas transversais, circundava quarteirões, e voltava
Sempre e cada vez à linha mestra, rota, rua,
Canal e trilho do meu louco e desatinado trem.
Depois parava embaixo do prédio onde no alto uma menina
Fútil e linda, por quem eu era loucamente apaixonado, dormia há horas.
Lá embaixo olhava, olhava muito tempo para cima,
Para o inalcançável amor. Depois partia
Ansiando que outro dia rapidamente chegasse e eu
Pudesse ir vê-la nos locais que freqüentava
E me esnobava. Eu nada sabia do desejo que me arrastava pela
Coleira, que todo apaixonado usa, como um cão.
E continuava a andar por horas sem nada entender do que se passava comigo,
Nem quem eu era,
Porque havia perdido o controle de mim mesmo.
E nunca antes a fronteira da adolescência, infância e idade adulta
Foram tão difusas e confusas.
Agora eu ando por um Gonzaga imaginário
Mais uma vez absolutamente solitário,
Rodado como um velho táxi onde amigos incríveis viajaram,
Onde namoradas e malucas malharam, fumaram e gozaram
Como buzinas no rush do planeta.
Levo no porta luvas, todos os mapas que nunca abri
E todos os livros de poesia que li, reli e elegi.
E o meu rádio irradia a melhor música:
Meu pão, meu pau, meu sal.
Na lataria de baixa qualidade, musgos e marcas
De pequenas maldades, alegrias,
Deselegâncias, insights fulminantes, alergias.
Agora se misturam em meus olhos multifocais
Os locais que existem e os que não existem mais.
Ando à toa, sem buscar nada, nenhum prédio
Que esconda a sensação terrível e inesquecível da paixão.
Vou levado por um velho e calejado coração
Que vadia calmamente sem dono,
Novamente como um cão,
Sem eira nem beira,
Nem coleira.



MEU ALEPH (para Borges)

Vi o interior das conchas,
Que forravam praias inteiras,
No litoral paulista.
Vi os instrumentos de tortura,
Tão inúteis na arte de eliminar idéias.
Também vi os instrumentos musicais
Das aldeias ainda não descobertas
No coração da selva amazônica.
Vi suas festas, sua repugnante comida
E as tintas tão belas com que se transformam
Em seres mais coloridos do que os pássaros.
Vi todos os pássaros.
Vi as celas dos homens
Que atravessam a vida em plena ascese.
Os iogues perfeitos em samadhi.
Vi os Budas e os bordéis.
Todas as acrobacias sexuais,
Todas as lascívias.
Vi a maquiagem pesada daquelas mulheres,
Seu falso orgasmo
E sua incurável solidão.
Vi dois adolescentes transfigurados pelo amor.

Vi um peso raro de cristal,
Rolar de uma antiga escrivaninha,
Para no chão se espatifar em centenas de fragmentos,
Como uma estrela explodindo.
Rosebud!
Vi Cidadão Kane e todos os filmes.
Vi a surpresa dos que nascem
E dos que morrem bruscamente.
Vi sua lenta decomposição até o nada.
Vi o sol que são os olhos das pálidas parturientes.
Vi vergonha, estupros e dor
Disseminados pelo mundo.
Vi todos os bailes do planeta.
Todos os músculos do corpo expandindo-se
Nos esportes.
Vi a secretíssima biblioteca do Vaticano.
Vi os abrigos antinucleares.
Os desertos e suas serpentes.
A alegria dos que chegam ao oásis.
A lua sobre o caravanserai.
Vi um preso que há dias da execução
Sorria em seu sonho, na prisão.
Vi os escritores atravessando madrugadas,
Febris, em seu ofício solitário.
Vi mulheres magníficas.
Pérolas. Venenos que fulminam
Sem deixar seu traço.
Vi o universo absurdo dos insetos.
Ursos polares. Águias.
Panteras escondidas na folhagem.
Vi meu filho e o filho de meu filho
Enfeitando a minha lápide
Com uma flor vermelha.
Depois não vi mais nada.



CHAT S.M

Nos encontramos em um lugar escuro,
E entre nossa curiosidade e ânsia,
Havia um muro
De desconhecimento e desconfiança.
Era uma espécie de inferno
Aquela sala
Onde queimavam
Falas, falos,
Parceiros incompletos.
Na cegueira que a todos atingia
As imagens sensuais, infames
E perversas, prosseguiam
Como um cachorro louco
Servindo de guia.
As mentiras eram
Iscas vivas
Em um tanque onde
As águas turvas
Escondiam na merda e creolina,
Possíveis turmalinas.
Onde mulheres velhas se passavam por meninas.
Onde impotentes se faziam garanhões.
Através da longa madrugada,
Nos dedos atolados no teclado,
O tato ausente,
Solidão.
Na tela hipnotizante e clara,
A cela rara
Onde os desejos latiam enjaulados,
Na ilusão do lado a lado,
De acabar a besta busca,
Achar um porto na alegria,
Saciar a fome louca
Que nunca se sacia.



MINÉRIO

Meu amor não é animal,
É mineral.
Desaparece no tempo,
Lento e solitário.
Minério,
Mergulha no rio do sangue:
Imerso,
Imenso e alucinado.
No lado escuro da lua.
Pérola na noite da concha.
Calado atravessa o tempo.
Calendários caem no lixo
E ele segue inalterado.
Como uma pedra rolando,
Meteoro abandonado.
Trem bala sem passageiro
Ou metrô desabitado.
Submarino, secreto.
Adormecido naufrágio
Que emerge como relâmpago.
A consciência: uma praia.
Algum som o trouxe à tona.
Algum gesto, riso, cheiro...
Algum sonho já sonhado.

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